quinta-feira, 13 de maio de 2010

6x15 "Across the Sea"

Antes de qualquer coisa, eu sei que fiquei devendo um gazilhão de comentários ao público desse blog, mas desde que eu descobri que ia ser pai, tem sobrado pouca energia e paixão para dedicar a qualquer outro assunto. Porém, agora chegamos na tão temida e aguardada reta final da série, e aquela comoção já bem profetizada entre os fãs da série começou a tomar as redes sociais de assalto, então sinto que um comentário se faz necessário. Ainda pretendo comentar, ainda que retroativamente, os episódios que deixei de lado, mas por enquanto vou esquecer o completismo em prol da chance de participar da discussão sobre o fim da série em "tempo real."

Como muitos dos episódios dessa sexta temporada, "Across the Sea" é um episódio atípico, que não segue o formato da série de intercalar duas narrativas ao longo da projeção. Escrito pelos produtores e dirigido pelo cada vez mais competente Tucker Gates, o 15º episódio da última temporada é um grande e elucidador flashback sobre as origens dos dois antagonistas que puxam as cordas de todos que cruzam o caminho da ilha (ou seria o contrário?) desde o início da série. E é também um episódio sensível, belo, envolto em mitologia - tanto histórica quanto da própria série - e que dá, sim, muitas e boas respostas. Acho que o que falta na maioria dos fãs é a vontade de enxergá-las.

Em primeiro lugar, eu acho que Damon Lindelof e Carlton Cuse estão fazendo um trabalho excelente no que tange a arrematar uma mitologia que tanto instigou a imaginação dos fãs e que, por consequência, jamais seria satisfatória para a maioria. É um efeito conhecidíssimo no entretenimento, esse da decepção que os fãs sofrem quando os mistérios de uma obra muito longa são solucionados, porque quanto mais tempo um espectador/leitor tem para teorizar sobre as questões da obra, mais eles se apegam e se apropriam de suas próprias explicações hipotéticas. Para um roteirista, a melhor opção para assegurar-se que um desfecho não será apreciado apenas pela pequena parcela do público que mantém as expectativas baixas e assiste sem se apropriar (eu) é jogar muito mais com sensações do que com palavras. "Across the Sea" é exatamente isso. Um episódio feito de sensações, de arquétipos, de imagens. É uma história com respaldo em quase todas as mitologias religiosas do mundo, uma história que não precisa de nomes ou etiquetas. A Luz que cada um carrega em si pode se chamar Deus, ou Anima, ou Mana, whatever. A Ilha pode se chamar Éden, Israel, Asgard, Dimensão X, que seja. Não é o nome que importa. É a simbologia.

O que as pessoas não compreendem, na minha humilde opinião, é que Lost é uma jornada do real à realidade fantástica e, finalmente, ao espiritual. Como qualquer caminho da iluminação, não adianta ser informado friamente sobre o que há por trás do véu, é preciso erguê-lo aos poucos para que o conhecimento não seja imediatamente rejeitado pelos sentidos. Começamos a série com um grupo de pessoas que viviam um acidente de avião bastante real, que se deparavam com situações verossímeis porém desconectadas (ursos polares numa ilha tropical), depois analisavam cientificamente a ilha (com a ajuda dos restos mortais da Iniciativa Dharma) e progressivamente descobriam que, assim como a ciência em relação a Deus, embora a maioria das coisas inicialmente inexplicáveis tivessem causas científicas, essas próprias causas científicas muitas vezes continuavam um mistério em sua fonte. Os efeitos estranhos da ilha eram causados pelo magnetismo, mas o que causa o magnetismo? Os Outros eram pessoas como os Losties que foram para a Ilha para seguir um sujeito chamado Jacob, mas quem era Jacob? Pouco a pouco, as pequenas estranhezas se tornaram grandes estranhezas: viagens no tempo, teletransporte, humanos imortais, uma fumaça negra sensciente que se locomove por aí. Coisas que a ciência fantástica já fazia malabarismo para explicar. E agora, enfim, uma parábola digna das religiões nos traz ao cerne de fé da série, àquele ponto em que a ciência joga a toalha e se assume incapaz de explicar com as ferramentas que tem à mão.

Muita gente pode ter ficado ofendida com a falta de objetividade científica na apresentação da história da Ilha, mas se esquecem que "Across the Sea" se passa em uma época onde o mundo era mais místico, aonde a explicação para a chuva e o vento eram tão não-científicas quanto para uma luz que vive dentro de cada um. Aliás, mesmo nos dias de hoje, a alma humana é considerada um fato pela ciência, mas não é cientificamente explicada. Quem está se decepcionando com o "misticismo" de Lost, tinha que se decepcionar também com toda a História Natural por esse grande furo de roteiro.

E se você prestar atenção no que está sendo contado ao invés de procurar respostas como quem pula para as últimas páginas de uma revista de passatempos, verá que a ciência e a fé continuam equilibradas no universo de Lost. Toda a história de Jacob e seu irmão sem nome (que eu já chamei de Esaú mas apelidei de Prometeus depois desse episódio) é a mesmíssima história ecoada por Jack e Locke na primeira temporada, a batalha entre a ciência e a fé. Jacob é o homem da fé, aquele que mesmo se sentindo preterido e às vezes diminuído na presença do irmão engenhoso, aceitava o que sua mãe lhe dizia, as regras que seu irmão criava, aceitava seu destino como lhe era apresentado. Já o homem de preto era a ciência. Aquele que passava a infância se questionando sobre o que havia além do mar, aquele que questionava a sabedoria da "mãe," aquele que abdicou da divindade para se unir aos homens, cuja falibilidade ele desprezava, por admirar sua curiosidade e seu questionamento. Aquele que queria estudar a Luz como um cientista estuda a natureza. Aquele que se revoltou contra a criação por esta lhe esconder respostas e que matou Deus.

No fim das contas, Lost continua sendo exatamente o que seus produtores sempre disseram que seria, uma história sobre fé versus conhecimento. E a julgar pela trajetória do protagonista Jack Shepherd, que é o cientista convertido pelo sacrifício do profeta John Locke, pode-se dizer que a "moral" de Lost está do lado da fé, ao menos daquela fé intrínseca e necessária para que o homem não vire uma máquina. Não acho errado. Ciência e Fé, em obras de ficção, são metáforas para Razão e Sensibilidade. E eu, como uma pessoa naturalmente dada à Razão, sei bem que levei muito tempo e muita porrada até entender que a Sensibilidade não pode ser ignorada em nenhuma equação e que a Razão pura é muitas vezes amoral e danosa, por mais elegante e poderosa que ela possa ser. Em um mundo onde a fé é praticamente só usada - racionalmente - para fins políticos, Lost conseguiu mostrar, de uma forma amigável para as mentes inquisitivas do século da Ciência, que há beleza na fé. Que há coisas que a Ciência não consegue tocar, mas consegue destruir se quiser, e isso é um território perigoso. Mas não sem fazer uma ressalva, claro. Quando Jacob se deixa levar pela emoção, mata seu irmão e abre a Caixa de Pandora que agora ameaça engolir o mundo com sua escuridão tecnocrata na forma do Fake Locke, a mensagem é cristalina: a fé cega é infinitamente destrutiva.

Se isso não é resposta suficiente para você, não tenha grandes esperanças para o series finale.

12 comentários:

  1. Ótima a sua analise!! É como a "mãe louca" disse para a "mãe verdadeira": não adianta fazer mais perguntas, pois as respostas só vão trazer novas dúvidas... No nosso caso, é hora de parar e refletir qual a idéia que está sendo transmitida agora, pois ficar se degladiando para saber o nome do homem de preto ou a origem da luz não vai nos permitir a desfrutar esse "Series Finale" como deve ser.

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  2. Aaah!! Obrigado Rafael!
    Obrigado por postar! Obrigado por você concordar comigo mesmo sem saber!

    Desde Dr. Linus venho a esse humilde blog (assim como vou a outros 30) na esperança de ver um comentário seu...
    Que bom que a minha fé valeu a pena.

    Nada melhor do que ler um comentário seu na altura desse episódio que causou tanta polarização.

    Desde que você parou de postar, Lost vem causando cada vez mais controvérsia. Eu, no meu modo de pensar bem semelhante ao seu, fato que descobri pela quarta temporada lendo seus reviews nas comunidades pelo Orkut, estava atônito procurando um blogueiro que escrevesse o que queria ler...

    Adoro ler comentários diametralmente opostos ao que eu analisei do episódio, mas a procura por um que sintetize o que eu pensei é ainda mais fascinante.

    Continue sempre postando!

    Abraços,
    Michel.

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  3. Muito, muito bom, Rafael. Certíssimo e certeiro.

    abração,
    CA

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  4. Salve Rafael, bom dia mano, sou membro da comunidade Lost e vi que vc saca bem a serie, gostaria que vc podesse tirar um dúvida minha se possivél.
    Acompanho lost desde a 1ª temporada, e confesso a vc que nessa ultima temporada, estou meio perdido quanto a linha do tempo.
    Não estou entendendo ao certo esses acontecimentos pasados dos personagens de ter ido e voltado da ilha com suas respectivas vidas normais. A duvida é a seguinte,
    (Ex, sawer ser policial e ter ido para sidney e voltado em dois dias, Jack tb ter ido e voltado como se não estivesse nada acontecido etc.
    A minha pergunta é essa, e quanto aquela temporada que alguns voltaram pra casa e que teve toda repercussão da midia, aquilo não aconteceu? ou aconteceu em que tempo?

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    Respostas
    1. Caro Serginho,
      Quando vc diz "aquela temporada em que todos voltaram para casa..." deve estar falando da 4ª temporada - na minha opinião uma temporada excelente - que mostrou o retorno de alguns (os oceanic six) para casa. Pois bem aquilo ocorreu de fato na realidade paralela original, mas não na outra realidade, aquela em que o avião pousou em segurança no aeroporto internacional de Los Angeles. Inclusive, por causa disso, essa realidade chegou a ser chamada de realidade alternativa - o que foi logo refutado pelos roteiristas e produtores da série - uma vez que isso implicava que uma realidade fosse "certa" e a outra "errada".

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Parabéns, Rafael... Nunca li um post tão reflexivo!

    Tem que ter muito background.

    Abraço! Continue blogando!!!

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  7. Rafael, esse foi com certeza o melhor post sobre LOST que já vi até hoje!Simplesmente brilhante!
    Gostei do episódio e o achei bem esclarecedor, mas alguns pontos que você levantou aqui me fizeram repensar o que vi (e isso num "bom sentido"). Não tinha parado pra pensar na ideia do MIB enquanto "homem da ciência" no melhor estilo Jack da 1ª temp., embora o tenha achado inteligente, perspicaz e questionador. Cada vez mais tenho a impressão de que sim, os roteiristas já sabiam como ia terminar (pelo menos em termos de grande estrutura) desde o começo...
    Além disso, a reflexão das atitudes finais de Jacob enquanto representantes do perigo da fé cega me trouxeram novas perspectivas sobre a série que "casam" com o penso em termos de realidade, religião e vida.
    Só tenho a dizer: parabéns pelo post!

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  8. "Aliás, mesmo nos dias de hoje, a alma humana é considerada um fato pela ciência, mas não é cientificamente explicada."

    Rafael, legal a analise, mas sinto muito, a alma humana não é considerada "um fato" para a ciência. Só se for pela pseudo-ciencia, mas pela ciencia, não mesmo!

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  9. Assino em baixo, com todas as letras, Wind. Eu ia (talvez ainda vá) escrever sobre o episódio, mas depois de ler o seu, a tarefa de não ser repetitiva ficou mais difícil pois penso exatamente o mesmo.

    Aquele escândalo semana passada no Twitter me deixou com o pé atrás com o episódio que assisti ontem, e quando ele terminou, fiquei com a sensação que o ódio do Mário, Core e outros foi totalmente descabido e desproporcional e altamente subjetivo.

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  10. Ah, e aqui a minha "humirde" opinião, mais sobre a polêmica do que sobre o episódio, já que você já tinha falado tudo! :)

    (no meu blog secundário)
    http://enadamais.wordpress.com/2010/05/19/lost-across-the-sea-and-across-the-meaning/

    Adriana

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  11. Eu de novo, tava lendo os comentários que eu não tinha lido e respondendo ao Serginho mais acima, eu sugiro a leitura do artigo do Flávio Watson sobre o flashsideway da 6a temporada:
    http://www.metamorphina.org/blog/?p=156 -> O paradoxo de Faraday-Widmore .

    Adriana.

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